domingo, 31 de julho de 2011

ES: Casas onde mora a esperança. A falta de unidades públicas para tratar inúmeros dependentes químicos torna as comunidades terapêuticas a única saída

foto: Ricardo Medeiros
ana paula e ronivaldo de souza
Os irmãos Ronivaldo e Ana Paula: unidos pela dor e pela alegria de superar o maior desafio de suas vidas
Claudia Feliz - cfeliz@redegazeta.com.br

Eles têm um vínculo extremamente forte. Foi com Ronivaldo, 40, que Ana Paula, 35, cheirou sua primeira carreira de cocaína e, em busca de novas sensações, também fumou sua primeira pedra de crack. Mas depois do prazer veio a dor que ambos dividem e da qual, desesperadamente, buscam se livrar.

Só agora os dois irmãos começam a ver luz no fim do túnel escuro para o qual o crack os levou. Numa clínica de dependentes químicos em Cachoeiro de Itapemirim, Sul do Espírito Santo, com outras 33 pessoas, tentam retomar o controle de suas vidas.

Tragédia
Em todo o Brasil, o Ministério da Saúde estima em 600 mil os usuários de crack - 7 mil só no Espírito Santo. Verdadeira tragédia, com dimensão maior se considerarmos a dependência de todas as drogas - incluindo o álcool -, que afeta 12% da população.

Mas os irmãos Ana Paula e Ronivaldo Abreu, internados por ordem judicial na Casa da Paz, em Cachoeiro, tentam sair dessa estatística. Estão "limpos" - sem usar drogas - há mais de um mês.

Visitar comunidades terapêuticas é como percorrer um labirinto. Em cada canto uma dor, que se mistura à enorme força dos internos e de quem a eles se dedica. Nem o governo sabe quantificar no país quantas são. Na maioria, falta estrutura, e a rotina é de trabalho e orações.

Oficialmente, diz a diretora da Agência Nacional de Saúde (Anvisa), Maria Cecília Martins Brito, são cerca de 800, número bem aquém da realidade, admite ela.

É fato que a insuficiente rede pública de saúde torna esses lugares a única esperança para muita gente. Não por acaso é esse o nome de um projeto ligado à Igreja Católica - a Fazenda da Esperança - e que, por causa do aumento de usuários de drogas, já abriu uma unidade no Estado e busca recursos do governo para inaugurar mais duas.

Você tem histórias de envolvimento com crack na família é quer contar a sua (não é preciso se identificar)? Acesse aqui.


Flexibilização

E o número dessas comunidades terapêuticas tende a aumentar agora que a Anvisa flexibilizou as normas de funcionamento. Nem é preciso ser médico ou enfermeiro para gerir uma delas. Basta ter um curso superior.

Nem todas seguem normas mínimas, o que preocupa as autoridades sanitárias e o promotor de Justiça Sócrates de Souza. "Temo por um mercado sem controle, de exploração de famílias apanhadas num momento de fragilidade", diz ele, à espera de um convênio com o Estado que garanta uma fiscalização maior das unidades.

Mas, mesmo fora do padrão, muitas cumprem função importante: manter o usuário longe da droga, do assédio do tráfico.

A Casa Missionária Bálsamo Giliade é uma delas. Em São Torquato, Vila Velha, está uma de suas oito comunidades comandadas por uma mulher sem curso superior e que há 30 anos deu início ao que define como um chamado divino. Maurina da Silva, 60, assiste mais de 200 pessoas, todas em busca de libertação das drogas.

Quatro das unidades funcionam em sítios cedidos por voluntários. Poucos dos internos conseguem pagar R$ 200 mensais - a maioria é muito pobre ou perdeu tudo o que tinha por causa do vício.

Desejo
Muitos chegam ali fugindo da ira de traficantes. "Digo que são amados aqui, mas que a libertação, mesmo com ajuda de Deus, depende de cada um. Usuário tem que querer parar de se drogar", diz a missionária evangélica.

Há até quem durma sobre papelão, na porta da casa de triagem, implorando "um cantinho, nem que seja no banheiro".

Temendo o estigma, muitos dependentes não querem seus nomes divulgados, como o médico de 38 anos que tenta se libertar do crack num sítio transformado em comunidade terapêutica pelo ex-dependente, hoje secretário de Segurança e Cidadania de Vila Velha, Ledir Porto. João (nome fictício) cozinha, varre o chão, ora... Ser médico não o faz diferente dos seus 17 companheiros de dor.

O próprio Porto admite que sua unidade, que conta com ajuda voluntária de um psicólogo e uma assistente social, não resiste a uma fiscalização rígida, assim como as muitas comunidades terapêuticas que funcionam sem registro no Estado.

Uma rápida passagem por Xuri, zona rural do mesmo município, mostra isso: 27 homens lutam contra o vício numa casa de apenas três quartos no Centro de Recuperação Visão de Águia, da Igreja Assembleia de Deus de Vila Garrido. Ali, como em muitas comunidades do gênero, não há profissionais de saúde e Serviço Social.

Os homens oram três vezes por dia, cuidam da casa e da horta. A maioria foi e voltou ao inferno do crack várias vezes. Para manter o projeto, quem pode paga R$ 100,00 por mês.

foto: Ricardo Medeiros
dependente
Rafael Luz: no cafezinho no shopping, um novo prazer
Livres da morte
Os coordenadores, Leandro Santos, 28, e José Willian, 25, ex-dependentes de crack, dizem que pela casa já passaram "médico, engenheiro e policial federal". Santos, que já cumpriu pena por assalto e traficou drogas, garante que muitos estariam mortos se não estivessem na comunidade terapêutica.

E as histórias repetem-se. Um homem de 42 anos fala com orgulho do Projeto Esquadrão Resgate Vida, que se prepara para abrir a quarta unidade.

Diz que está salvo graças à comunidade, ligada à Igreja Deus é Fiel, com orientação psicológica e atividades laborativas para os usuários, mediante pagamento de um salário mínimo mensal.

José (nome fictício) está "limpo" depois de nove meses na comunidade, mas não quer sair. "Muitos dos que conheci fora daqui morreram no tráfico ou estão presos", diz ele.

Em Cachoeiro, Jacson Miranda, 39, vive sua segunda tentativa de curar-se do vício na Casa da Paz. A primeira foi desastrosa: ficou 23 dias num local onde podia comprar crack, porque a "boca" funcionava ao lado. No dia em que não pôde adquirir, fugiu.

Na Casa da Paz, com acompanhamento de médico, psicólogo, nutricionista, terapeuta ocupacional e professor de Educação Física, fala do prazer de estar "limpo e feliz".

Diferentemente de muitas comunidades, a unidade - com diária de R$ 123,00 - pertence a Luciano Silva Santos, 46, e à sua mulher, Marcelle. Lá, é aplicado o modelo comportamental: há paciente que trabalha durante parte do dia e gente como Alexandre, 20, liberto da cocaína há meses, que, após fazer o supletivo, acaba de ser aprovado em Direito.

Não fosse um convênio com a Prefeitura de Campos dos Goytacazes (RJ), os irmãos Ana Paula e Ronivaldo, e Bismark Gomes Bonan, 23, não poderiam estar ali. Durante seis meses, a seu pedido, Bismark foi acorrentado pela mãe, em casa, em Campos. Pai de três filhos, viúvo, diz que o crack o levou à prisão e à beira da loucura. "Tenho fé de que vou me curar", frisa ele, que começou usar droga aos 11 anos.

Medo
Confiança e esperança são palavras que "brotam" das bocas dos internos, assim como medo. Medo de sair do "casulo" e enfrentar o mundo real.

Estudante de Psicologia e ainda na casa para onde foi levado compulsoriamente, em 2007, o mineiro Tiago Nunes, 27, é ali um conselheiro. E destaca a importância do modelo comportamental.

Um modelo que permite que o comerciante Rafael Luz, 38, que perdeu mais de R$ 1 milhão por causa do uso de álcool, cocaína e crack, dê seus passos rumo à libertação. Vive na Casa da Paz há um ano e sete meses, na 15ª tentativa de pôr fim à dependência química.

É ele quem sai com aqueles que ainda não estão prontos para, sozinhos, ter contato com o mundo exterior. Vai ao cinema, ao shopping, programas que, para você, podem ser banais, mas para quem vive sob o terror das drogas são passaportes para a liberdade.

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