Por Reinaldo Azevedo
Este
polemista “de direita”, como diria Marcelo Rubens Paiva, já lembrou aqui
algumas vezes que o Brasil é o país que torrou bem uns R$ 5 bilhões com
a reparação às vítimas — e sobretudo às supostas vítimas — do regime
militar, mas ainda é um dos países em que mais se torturam presos comuns
no mundo. Acho que é esse aspecto da minha postura que Paiva e seus
amigos não conseguem entender: eu não faço diferença entre vítimas com
pedigree e sem pedigree. Eu acredito, de fato, o tempo todo em
quaisquer circunstâncias, na igualdade entre os homens. Mobilizam-se
mundos e fundos para fazer uma tal “Comissão da Verdade”, que vai
recontar a história em nome do estado — e é preciso ser obtuso ou dotado
de má fé para não ver nisso um traço autoritário; verdade oficial??? —,
mas não se consegue impedir a tortura do Maicon Uedinesdei da Silva na
delegacia da esquina. Essa ainda é a sociedade dos fidalgos: de direita,
de centro, de esquerda…
Vejam o caso
do combate ao racismo. O Brasil é hoje o país onde essa causa assume os
contornos mais histéricos. Fez-se política de estado, afrontando, é bom
notar, a Constituição. É evidente que as cotas violam o princípio da
igualdade perante a lei. Na prática, para que não se puna um negro
porque negro, pune-se um branco porque branco. É um escândalo! É a
racialização das políticas públicas e do estado, coisa de fascistas —
ainda que de fascistas de esquerda (de fato, dada a história, o fascismo
é de esquerda; de direita é o liberalismo, pombas!). Adiante.
Os embates
sobre racismo costumam ser os mais interessantes. Há o racismo em que
todos são vítimas: aquele que é discriminado e aquele que discrimina
também. Ele nasce da falta de educação, de informação, de cultura
humanística, de civilidade. Imersos na ignorância, os filhos são
racistas porque os pais eram, os avôs idem… Leio sobre esses cretinos
perigosos que raspam a cabeça e exibem símbolos nazistas e me pergunto:
“O que sabe essa gente sobre essa miséria?” Nada! Isso não quer dizer
que não devam ser combatidos e severamente punidos. Não há estado de
direito se o indivíduo puder alegar ignorância da lei para explicar seus
crimes.
Mas há
outros racismos, mais sutis, que costumo classificar de “racismo de
segundo grau”, porque “informado”. Um deles chama especialmente a minha
atenção. Pode haver algo mais racista do que entender que um negro está
obrigado a defender uma determinada pauta — as cotas raciais, por
exemplo — só porque ele é negro? Pode haver algo de mais racista do que
considerar que um determinado negro só conseguiu uma posição de destaque
na sociedade ou na sua profissão só porque fez concessões ao “poder
branco”, porque não teria sido contundente o bastante na defesa de sua
“raça” (que raça não é!), porque fez o jogo do dominador? Quer dizer que
alguém que nasça negro já nasce com uma pauta, com um conteúdo, com
escolhas ideológicas feitas? Eis aí o racismo mais difícil de ser
vencido porque ele se quer uma teoria de resistência e de contestação.
Participei
de um evento, ao lado de colegas jornalistas, no Rio, por ocasião dos 63
anos do estado de Israel — raramente tão ameaçado como agora, diga-se.
Um dos presentes me perguntou se a acusação de estupro que pesava contra
um ex-presidente do país depunha contra a imagem dos judeus como um
todo. Respondi, para espanto geral — inicialmente ao menos; depois ficou
claro o que quis dizer — que até depunha a favor. Também os judeus têm o
direito de ter seus doentes para tratá-los, de ter seus canalhas para
puni-los, de ter seus imorais para repreendê-los. Esse povo não está
obrigado a produzir só gênios para compensar alguma culpa ancestral,
alguma falha primeva. Invertendo uma sentença conhecida, digo que os
judeus podem, e devem, ser diferentes sendo iguais. E isso vale para
todos os povos, para todas as pessoas.
Ora, quem
não suporta que um negro possa ser um não-engajado na sua causa não
reconhece o outro como aquilo que ele é antes de qualquer condição:
indivíduo. Se o quer primeiro um negro para só então arbitrar sobre a
sua moral e as suas escolhas, é óbvio que está praticando a mais
asquerosa forma de discriminação racial — um racismo encoberto, algo
envergonhado, mas não menos pernicioso do que aquele que é fruto da
ignorância.
Atenção!
Machado de Assis, o maior escritor brasileiro de todos os tempos, um
gigante de verdade, inexplicável e inexplicado pela sociologia — nem que
Roberto Schwarz passe os próximos 200 anos com o seu tatibitate
marxista (santo Deus!) —, é objeto, em certos círculos, dessa “forma
superior” de discriminação, que não é estranha à tese do nosso marxista
progressista, diga-se. Tudo somado e subtraído, há quem queira que ele
nunca foi negro o bastante. Acusam Machado de Assis, em suma, de ter
sido um preto de alma branca, mal escondendo que, ao afirmá-lo, acabam
atribuindo seu gigantesco talento a essa suposta alma branca. É um
pensamento asqueroso, ainda que pretenda se apresentar sob a forma de
tese combativa e anti-racista.
E, agora,
finalmente entro na polêmica sobre o filmete publicitário da Caixa
Econômica Federal, em que um Machado mais branco do que as asas de um
cisne entra no banco para fazer o seu depósito na poupança. Segue
abaixo. Volto em seguida.
O filme
pode não ser racista porquanto não promova a distinção de cor de pele
(ou “raça”) como um valor, mas é evidente que viola um dado objetivo,
conhecido: Machado era mestiço. Eis aí: este é um governo que tem uma
secretaria de estado, com status de Ministério, só para lidar com
questões raciais, mas que permite que aquilo vá ao ar. O que explica? É
que a questão racial serve como instrumento de militância, entenderam?
Ainda é um subproduto, gostem ou não, da teoria da luta de classes, que
hoje se fragmentou nas várias “minorias”. Combate-se o racismo como uma
“causa”, no puro proselitismo, mas, de fato, no teste da realidade,
pouco importa o preto ou o mestiço que há.
Não estou
entre aqueles que dão curso fácil às acusações de discriminação racial,
não. Há, sim, quem faça uso oportunista da questão. Nesse caso, no
entanto, pretos e mestiços têm uma razão particular para protestar (mas
ninguém está obrigado a nada). É evidente que o embranquecimento de
Machado concorre para a sua invisibilidade . Mas o protesto deve ser
coletivo: a publicidade oficial frauda um dado da realidade. Se não há, e
não há, razão para caracterizar um Carlos Drummond como mestiço — e,
por isso mesmo, ninguém o faria —, deve haver alguma, ainda que seja
apenas a ignorância, para que Machado pareça um alemão no filme da
Caixa.
Ainda que seja apenas a ignorância, eis um motivo para um bom combate.
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