domingo, 7 de agosto de 2011

ES: A vida de bené na prisão. Ex-tesoureiro de campanha do governo José Ignácio passa as noites no Complexo Penitenciário e trabalha de dia como corretor de seguros

Raimundo Benedito de Souza Filho, Bené, ex-tesoureiro da campanha do governador José Ignácio Ferreira, saindo do Complexo Penitenciário de Vila Velha, onde cumpre pena em regime semi-aberto - Editoria: Política - Foto: Nestor Muller

Foto: Nestor Muller
Às seis da manhã, ex-tesoureiro de Ignácio Ferreira sai para o trabalho. Os outros presos elogiam Bené
Rondinelli Tomazelli - rsuave@redegazeta.com.br

Quinta-feira, 4 de agosto, 06h07 da manhã no Complexo Penitenciário da Glória, Vila Velha. Com roupa simples, aparência envelhecida, olhar assutado e andar apressado ao ver a câmera fotográfica, Raimundo Benedito de Souza Filho força o portão da prisão. Sai a pé na estrada de chão empoeirada rumo a mais um dia de trabalho, agora  como corretor de seguros.

Essa é a rotina na cadeia de Bené, ex-tesoureiro de campanha do ex-governador José Ignácio Ferreira. Há dez anos, Bené foi um dos principais personagens do pior escândalo político do Espírito Santo e chegou a ser preso. Colecionador de processos, foi condenado em 2009 por desvios de verbas da Fábrica de Sopas, que nunca funcionou.

Em agosto passado, recebeu outra condenação, transitada em julgado no Superior Tribunal de Justiça (STJ), por crime tributário entre os anos de 1998 e 2000. Ele gerou rombo de R$ 9,8 milhões ao Fisco e recebeu pena de sete anos, dois meses e 12 dias de reclusão em regime semiaberto e pagamento de multa. Na época, o então "tesoureiro informal" também provocou um tombo nas cooperativas do Estado e usou contas bancárias para bancar a campanha de Ignácio e 12 imóveis da família do ex-governador.

Aborrecido
Carregando essa ficha policial, Bené tenta reconstruir sua vida. Desde o ano passado, ele cumpre a pena no Instituto de Reabilitação Social (IRS), dentro do Complexo da Glória. Depois de três tentativas em dias diferentes, localizamos Bené na saída da cadeia, na última quinta-feira.

Aborrecido ao ser fotografado, recusou-se a dar entrevista. "Vocês estão sacaneando. Foto, não". Saiu com colegas do presídio, dos quais recebeu apoio. "Vocês não respeitam nem o direito dos outros", disse um detento depois de lançar a mão sobre a câmera fotográfica.

Bené saiu a pé pelas ruas de Vila Velha com uma bolsa oferecida por um colega e "sumiu" ao ser seguido. Segundo a Secretaria de Justiça, ele costuma voltar perto das 19h (o limite é 20h30, embora alguns cheguem depois), levado pelo carro da empresa que o emprega. Assina um registro na entrada e na saída e, como os demais, é revistado.

A reportagem, no entanto, não viu Bené entrar  quando fez plantão no único portão do presídio, nos dias 13 de julho (de 18 às 19h), 2 de agosto (das 18h às 20h42) e 3 de agosto (das 17h30 às 20h50). No dia 3, a Sejus disse que ele entrou às 19h40.  

Presos ouvidos pela reportagem só fazem elogiá-lo. "Bené é  10, é conversador, gente boa e muito legal. Pessoa da melhor espécie", conta um detento. Outro diz que não o vê há mais de 45 dias.

Ilha do Boi
A Secretaria de Justiça, alegando motivos pessoais do preso, não divulgou onde Bené trabalha, mesmo argumento de seu advogado. A rotina dele, de todo modo, em nada lembra a de anos atrás, quando movimentou altas cifras, saiu de uma apartamento em Jardim da Penha e comprou uma mansão na Ilha do Boi - um dos metros quadrados mais valorizados de Vitória.

Neste imóvel, com dois carros na garagem, mora a ex-mulher de Bené, Angélica, que atendeu a reportagem no portão na última quinta, acompanhada de uma filha. Visivelmente abalada ao comentar o assunto, Angélica fez desabafos e críticas à imprensa. Disse que Bené "está na pior" e que a família passa por muitas dificuldades.

pagando, o único preso de todos daquela época. Estamos sofrendo muito", afirmou Angélica. De fato, apesar de terem sido condenados, Ignácio e sua mulher Maria Helena Ruy Ferreira, idealizadora da Fábrica de Sopas, nunca foram presos. Já o ex-presidente da Assembleia José Carlos Gratz foi preso várias vezes e condenado, mas está em liberdade.

Aniversário preso
O advogado Wilson Vilhagra, ex-assessor de Maria Helena e que admitiu cobrança de propina para concessão de regime especial de tributação, foi absolvido por colaborar com as investigações e trabalha como auditor na Receita Estadual.
foto: Nestor Muller
Rogério Santório, ex-presidente da Câmara Municpal de Cariacica, saindo do Complexo Penitenciário de Vila Velha, onde cumpre pena em regime semi-aberto - Editoria: Política - Foto: Nestor Muller
Rogério Santório, ex-presidente da Câmara Municpal de Cariacica, saindo do Complexo Penitenciário de Vila Velha, onde cumpre pena em regime semi-aberto

Angélica nega-se a dizer há quanto tempo está separada de Bené e conta a dor da perda de um filho em um acidente de carro. Já a filha lembra de diabetes, hipertensão, colesterol alto, necessidade de insulina e outros problemas de saúde de Bené.

As duas mencionam, com ar de tristeza, um fato que, nas atuais circunstâncias, não será comemorado pela família. Bené vai completar 60 anos de idade no próximo dia 20, na cadeia. Exatamente uma semana depois do dia dos pais, lembra Angélica.

Café e jantar
Mas o ex-tesoureiro não pode reclamar do tratamento recebido na prisão, mesmo que seja obrigado a dormir lá até aos sábados e domingos. No IRS, todos os presos do semiaberto que trabalham fora recebem café da manhã e jantar. Até pouco tempo dividindo a cela de 7 m² com um condenado por homicídio, Bené agora fica sozinho - o IRS está em fase de desativação e conta hoje com 150  presos.

Já o cardápio varia diariamente - e não tem sopa. Normalmente o café da manhã tem dois pães com manteiga, café, leite e uma fruta. E o jantar tem arroz, feijão, um tipo de carne que varia entre boi, frango, peixe e porco, mais algum legume ou verdura, além de suco e um doce de sobremesa.

Santório no IRS
Outro "colega" de Bené no IRS é uma figura notória dos escândalos de Cariacica. Trata-se do ex-presidente da Câmara local Rogério Santório, também no regime semiaberto. A reportagem acompanhou suas chegadas sozinho, a pé e suado.

Santório e a Sejus não  disseram o motivo específico da condenação, mas o ex-vereador admitiu tratar-se do "caso de Cariacica". Ele já foi condenado e  preso. Em 2000,  foi alvo de denúncias de desvios, benefício de parentes em concurso e contratação de servidores fantasmas na câmara em 2000. "Se eu falar me complico. Estou cumprindo 10 meses e saio mês que vem", disse.

A expectativa de liberdade é geral. Nos dias em que a reportagem esteve no presídio, a grande maioria dos que entravam para dormir eram jovens. Dois detentos chegaram conversando sobre o personagem bíblico Jó e pessoas "tementes a Deus". Um outro desabafou, levando as mãos à cabeça: "Ah, meu Deus! Mais um dia nesse inferno!"

Ex-vereador também está preso

Ex-presidente da Câmara de Cariacica em 2000, Rogério Santório está preso no IRS desde agosto de 2010, encaminhado pela Polícia Federal, e cumpre pena no semiaberto por omitir informação e dar declaração falsa ao Fisco.

Ele fica sozinho na cela e  vê Bené na prisão, mas diz: lá "ninguém é amigo de ninguém". Segundo Santório, seu caso está sob sigilo judicial. Na quinta, saiu às 06h18. Costuma voltar às 18h30. Em 2000, ele, mais 12 vereadores e quatro assessores da câmara foram presos acusados de "rachid". Santório teria desviado R$ 2,2 milhões.

"Eles têm de devolver o que roubaram"
A vida do engenheiro civil Demilson Guilherme Martins nunca mais foi a mesma depois dos esquemas irregulares de empréstimos de Bené em contas de cooperativas do Estado. Em 2001, Demilson viveu o baque: suas economias de R$ 70 mil à época foram bloqueadas na Cooperativa Creditel, que quebrou por conta das dívidas não quitadas do ex-tesoureiro.

Sua conta e a de muita gente foi bloqueada para cobrir o tombo, lembra. "Prisão no semiaberto é prêmio. Bené e os outros têm que devolver, ressarcir  o que roubaram. Eles destruíram  o patrimônio de uma vida inteira de muitas pessoas. Tenho um amigo que perdeu R$ 700 mil. Eu perdi R$ 70 mil e nunca  recuperei o valor".

Demilson, 69 anos, não sabia que Bené está cumprindo pena. Ele relata um fato curioso: entre 2006 e 2007, o ex-tesoureiro lhe pediu um empréstimo alegando que fora "iludido" por Ignácio. O engenheiro relata que Bené e Ignácio eram próximos do sistema de cooperativas. "Presidi a Creditel antes de 2001. Pensei que fosse um sistema seguro. O Bené fazia rodízio de empréstimos".

Chefe da Procuradoria Criminal, Sócrates de Souza narra as memórias da crise. Os inquéritos relativos aos desvios da Era Ignácio passavam administrativamente por ele - a então promotora da 7ª Vara Criminal, Fabiana Fontanella, atuava nos processos. Para o procurador, o fato de Bené estar cumprindo pena é simbólico.

"O fato em si envolvendo Bené e a família Ignácio é marco histórico para a Justiça e o Ministério Público Estadual. Não se pensava que alguém tão próximo ao ex-governador pudesse ser preso e condenado, apesar da demora. Aquele tempo de impunidade está ficando para trás", frisa Sócrates.

Acerca de só Bené estar na cadeia, o procurador argumenta que, "lamentavelmente", os advogados dos outros envolvidos usam recursos para adiar o cumprimento de penas. Ele pede que o Judiciário dê "atenção especial" e julgue logo os processos "emblemáticos" do Estado.

Anos de Crise
Impeachmet

Em 2001, o Estado vivia sua mais grave crise política. O governador José Ignácio Ferreira quase sofreu  impeachment. Prisões e denúncias de cobrança de propina a empresas abalaram o governo, e a Assembleia de José Carlos Gratz tomava conta do Executivo. Com ameaça do crime organizado, houve  pedido de intervenção federal no Estado. Escândalos de corrupção e desvio de verba chegaram ao   tesoureiro de campanha de Ignácio, Bené, preso e condenado duas vezes 

O tesoureiro

Conforme as denúncias,  o esquema  de Bené abarcou desfalques em cooperativas de crédito para caixa dois, desvios de créditos de ICMS e "doações" à Fábrica de Sopas. Bené era ligado ao   secretário de governo Gentil Ruy, irmão da primeira-dama demitido e  preso.  Em   2001, veio à tona dossiê com  1,8 mil cheques de conta de Bené na Cooperativa de Economia e Crédito Mútuo dos Funcionários da Escola Técnica Federal (Coopetfes), que sofreu intervenção do Banco Central. Cheques que  pagaram   12 imóveis da família Ignácio na Praia da Costa, Vila Velha. Cooperativas faliram.

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