Durante os primeiros meses da ‘panha’ (que se inicia em julho), a pior batalha é o frio da madrugada, que corta a pele do rosto e seca os lábios. Mas para Solange, que está nessa vida há mais de sete anos, esse pequeno incômodo se dissolve quando pensa no dinheirinho ganho e na conversa com as amigas no cafezal. Religiosa e devota de Nossa Senhora Aparecida, antes de sair para o trabalho, ela se ajoelha diante da santinha que tem no canto da sala e faz uma oração. Cozinheira de mão cheia e mãe de dois fi lhos – Naine, de 10 anos, e Wesley, de 17 – Solange se acostumou a cuidar dos dois, sozinha. “Gosto de viver, nunca dependi de ninguém”, conta. Com um bom copo de café nas mãos, ela esfrega os olhos, acomoda com calma as coisas na mochila – mais uma peneira e o rastelo nas costas – e chama a fi lha Naine: “Corda menina, tá na hora da escola.”
DINHEIRO EXTRA E DISTRAÇÃO
Mal espera a menina abrir os olhos, Solange passa a mão na broa da véspera e dá à fi lha. Logo, despede-se pega os apetrechos de trabalho e parte. Anda duas quadras e logo encontra as outras dez colegas sentadas num banco de pedra. Com voz ainda fraca de sono, saúda as companheiras. Quando o ônibus estaciona, todas se acomodam em seus lugares e vão para a labuta. Sentada ao lado de Solange está Maria das Graças, de 56 anos. “Sou nascida em Três Corações, no sul de Minas Gerais e comecei a trabalhar recentemente no cafezal. Iniciei em uma fazenda perto de casa. Ano passado, com o dinheiro do café dei entrada na compra de uma televisão”, diz, a empolgada Maria. Ela nos conta que faz esse trabalho uma vez por ano e que em alguns cafezais o pagamento é feito por quinzena e, nesse caso, ela tem que ir trabalhar todo o santo dia. Maria, Solange e as outras mulheres são unânimes em afi rmar que o trabalho é pesado e que é preciso ter sorte e pegar uma boa rua carregada de café. Por outro lado, é também divertido e, principalmente, distrai a cabeça. “Muito melhor do que fi car em casa sem ganhar nada”, argumenta Solange. Todas elas já ganharam um bom dinheiro com a tarefa.
Chegando ao cafezal, as mulheres correm na frente, olham as ruas, os pés de café e já dependuram suas roupas e mochilas nos galhos de árvores. “É bom começar o trabalho de barriga cheia”, dizem.. O processo é o mesmo: elas puxam os galhos do pé, varrem com o rastelo, peneiram e colocam o café dentro de um saco numerado. “Cada apanhadora tem um saco com o seu número. O meu é 28”, diz Maria das Graças. Na hora do almoço, a comida fria, trazida na marmita é esquentada com o auxílio de uma latinha de alumínio, fogo e álcool. Uma invenção para facilitar a vida. “Não gosto de comida fria”, afi rma Solange, com a latinha nas mãos. Todas se sentam ao lado do cafezal e batem papo, alimentam o corpo para aguentar mais duas horas de ‘panha’. A maioria dos trabalhadores dos cafezais é de mulheres, já que geralmente nessas regiões existem poucas opções de trabalho para mulheres. Com o salário, elas sustentam a casa, como é o caso de Solange, ou ajudam no sustento do lar. “Com o que ganho aqui no cafezal, ajudo nas despesas da casa. Tenho três filhos e três netos morando comigo e preciso ajudar. O meu marido ficou doente e parou de trabalhar e hoje eu conto com o meu filho, que tem emprego com carteira registrada. Ele arca com as despesas de casa e supermercado, e eu complemento com o que falta”, relata Maria das Graças.
"SENHORA DONA DE CASA, CINTURINHA DE RETRÓS VAI LÁ NA COZINHA FAZER CAFÉ PRA NÓS."
"EU QUERIA SER BALAIO NA COLHEITA DO CAFÉ PARA ANDAR DEPENDURADO NA CINTURA DE MUIÉ."
"ESTA CASA ESTÁ BEM FEITA, ARRUMADINHA COM CIPÓ O CAFÉ ESTÁ DEMORANDO, COM CERTEZA NÃO TEM PÓ"
Quadrinha descoberta por Marina de Andrade Marconi, no dicionário do folclore de Câmara Cascudo
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